Opinião: Um presidente impelido pelas próprias obsessões
Bolsonaro ordenou que seja comemorado nas casernas o 31 de março de 1964, aniversário do golpe militar que iniciou a ditadura. Ato revelador de um caráter patológico e interessado em dividir, opina Philipp Lichterbeck.Carmen A. foi presa em 1974 em São Paulo, ela tinha 28 anos. Os militares a levaram para uma prisão para ser torturada. Lá ligaram um cabo a seu seio direito e lhe deram choques. Eles queriam saber do paradeiro do marido dela e ameaçaram maltratar seu filho de 1 ano.Seus algozes se chamavam Doutor Romero e Capitão Ubirajara. Quando Carmen me contou sua história, um ano atrás, ambos estavam soltos. Eles tiveram que pagar tão pouco por seus crimes quanto todos os demais torturadores e assassinos de uniforme que, entre 1964 e 1985, afirmavam ter que proteger o Brasil da ameaça comunista.Receba as notícias e análises da DW no WhatsAppPara o presidente Jair Bolsonaro, homens como Romero e Ubirajara não são criminosos, eles são heróis. Isso diz muito sobre o caráter patológico de um homem cujo livro preferido foi escrito por um torturador que, entre outras coisas, mandava inserir ratos na vagina de suas vítimas.Esses e outros crimes nunca entraram na memória coletiva dos brasileiros. Isso se deve sobretudo à lei da anistia, que os militares introduziram em 1979, também para si mesmos. Assim, os cidadãos ficaram sabendo pouco sobre os aspectos sombrios do regime. Conservadores afirmam até hoje que a lei e a ordem imperavam na época.A falta de estudo e conhecimento sobre a história do país é um dos solos sobre os quais Jair Bolsonaro pode agora declarar o 31 de março dia comemorativo nas casernas. Em outros países da América Latina que sofreram sob regimes militares, seria impensável uma coisa dessas, hoje em dia. No Brasil de Jair Bolsonaro, é possível.Em 31 de março de 1964, as Forças Armadas brasileiras perpetraram um golpe de Estado contra o presidente constitucionalmente legítimo João Goulart, acusando-o de comunismo por, entre outros motivos, almejar uma reforma agrária.Milhões de brasileiros conservadores apoiaram o golpe, do mesmo modo que a elite econômica, empresas de mídia, a Igreja Católica e o governo dos Estados Unidos. Navios de guerra americanos se encontravam perto do litoral brasileiro. Era o início dos "anos de chumbo". Para Bolsonaro, em contrapartida, foi o começo de uma época gloriosa."Não houve golpe militar", ele comunicou agora através de seu porta-voz, foi uma "intervenção democrática". É a tentativa do político de reescrever a história de acordo com a própria percepção. E faz lembrar o romance de George Orwell 1984, em que o "Ministério da Verdade" está constantemente ocupado em acomodar o passado à linha partidária dominante.O presidente da República é obcecado por duas coisas: a homossexualidade alheia, que de forma repetida e inteiramente inútil insiste em tematizar, e o passado, o qual, assim como a todos os reacionários, o ocupa muito mais do que o futuro. O motivo por que ele se interessa mais pelos homossexuais e por uma ditadura militar que terminou 35 anos atrás do que, por exemplo, pela reforma da aposentadoria, um melhor sistema de ensino ou o combate à pobreza, é um caso para psicólogos.O fato é que esse presidente bloqueia novamente o Brasil. Ele não leva o país adiante, mas o toma como refém de suas obsessões. Ele não tem nenhum interesse em unir, ele divide; não quer paz, mas conflito permanente. Isso é seu combustível, o que ele tem em comum com Donald Trump, outro narcisista de coração pequeno e mente estreita.Cerca de 2 mil pessoas foram torturadas durante a ditadura militar brasileira, assim como Carmen A.. Quanto ao número de mortos, falta clareza até hoje. Embora por muito tempo se computassem 357 mortos, sobretudo oposicionistas de esquerda e guerrilheiros, em 2012 acrescentaram-se outras 600 vítimas: lavradores, sindicalistas, párocos de aldeia, ambientalistas. Um novo cálculo inclui agora também milhares de índios mortos por estarem no caminho de projetos de infraestrutura, como as represas no Amazonas.Devido a esses números de vítimas relativamente baixos, se comparados às ditaduras do Chile e Argentina, o regime militar do Brasil é também denominado "ditadura light". Mas isso existe? É do filósofo alemão Theodor W. Adorno a constatação: "Não há vida certa no que é errado". Da mesma forma não há ditadura suave para as vítimas. O torturador coronel Paulo Malhães foi assustadoramente franco, ao dizer perante a Comissão Nacional da Verdade, introduzida em 2011: "Nós matamos tantos quanto foram necessários."A pergunta decisiva: há mais do que mero revisionismo histórico por trás dos esforços de minimização desses homens? Trata-se de um projeto de legitimação de uma política que persegue o que é contrário e impõe seus projetos inescrupulosamente?Será então que este 31 de março visa apontar em direção ao futuro e, por exemplo, legitimar a destruição da selva amazônica e a expulsão dos indígenas em favor de interesses econômicos? Ou o procedimento cada vez mais brutal da polícia nas favelas? Será que a resposta aos graves problemas sociais do Brasil é, mais uma vez, repressão?Na realidade, em tudo isso há uma contradição dialética com que nem mesmo Bolsonaro possivelmente contou: os militares brasileiros estão pouco entusiasmados com a ideia de celebrar um golpe militar. O fato de essa ordem ter vindo do ex-capitão Bolsonaro, que nunca passou do baixo escalão, possivelmente gera desagrado adicional.Como se mostra de forma cada vez mais aberta, em sua maioria os generais não estão interessados em aprofundar o cisma da sociedade brasileira. São não raro pessoas racionais, que têm em vista o bem do Brasil e a paz. Isso os distingue de um presidente impelido por suas obsessões e que prefere promover a arruaça.______________A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas. Siga-nos no Facebook | Twitter | YouTube | WhatsApp | App | Instagram | Newsletter