Governo Bolsonaro manda sinais confusos à China
Ao mesmo tempo em que destaca importância do maior parceiro comercial, presidente e seu círculo mais próximo com frequência se manifestam de forma hostil à economia chinesa. Um retrato do descompasso em Brasília.
O descompasso entre os setores mais pragmáticos do governo Jair Bolsonaro e as figuras ligadas a Olavo de Carvalho não se restringe à posição do Brasil diante da crise na Venezuela ou às estratégias para lidar com o Legislativo. As relações com a China, maior parceiro comercial brasileiro, também se tornaram um campo de atrito para apoiadores do novo presidente da República, uma crise que expõe as dificuldades do governo para conciliar o ímpeto ideológico trazido das eleições com o cotidiano da administração pública.
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Antes de viajar para os Estados Unidos, na semana passada, Bolsonaro afirmou que a China “é muito importante” para o Brasil e, ao deixar Washington, confirmou que visitará o país asiático no segundo semestre. O presidente não se furtou, no entanto, a indicar sua contrariedade com o peso chinês na balança comercial. “A China é importante para nós, mas o Brasil deixa de fazer comércio com o mundo todo levando-se em conta o viés ideológico”, afirmou.
Esse tipo de pensamento ecoa o que expoentes do “olavismo” pensam sobre a China. Durante a campanha e após ser eleito, o então candidato retratou a China como uma predadora e repetiu algumas vezes que os investimentos chineses por aqui significavam uma tentativa de “comprar o Brasil” e não comprar “no Brasil”. Em março de 2018, Bolsonaro viajou para Taiwan, que a China considera uma província rebelde.
Em janeiro, quando integrantes do PSL, o partido de Bolsonaro, fizeram uma visita a Pequim, viraram alvo do próprio Olavo de Carvalho. Acusados de “vender o Brasil para a China”, foram classificados como “comunistas infiltrados na direita”.No mês passado, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) afirmou em entrevista que a China era a maior parceira comercial do Brasil por “motivos ideológicos”. No início de março, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, foi ainda mais explícito. “Nós queremos vender soja e minério de ferro, mas não vamos vender nossa alma”, disse.Em parte, as críticas à China se dão por conta da visibilidade que o investimento chinês tem no Brasil. Hsieh Yuan, líder do China Desk da Mazars, uma empresa de consultoria, explica que as estatais chinesas estão no Brasil “por necessidade”, atrás de alimentos e commodities, como petróleo e minério de ferro.Para facilitar a produção e o escoamento desses produtos, os chineses investem pesado em obras de logística e energia. Isso serviria como uma proteção ao Brasil diante do discurso dúbio do governo. “A política chinesa não é tão sensível assim. Muitas vezes, eles seguem a vida independentemente do que acontece aqui no Brasil”, diz.Apesar da necessidade dos produtos brasileiros, o governo chinês demonstrou irritação. Após a eleição de Bolsonaro, o jornal Global Times, ligado ao regime, afirmou que se ele “continuar a desprezar o princípio básico sobre Taiwan depois que tomar posse, isso aparentemente custará ao Brasil um grande negócio”. Mais recentemente, o jornal Valor Econômico revelou que o primeiro repasse do Fundo de Cooperação Brasil-China, que pode chegar a US$ 20 bilhões, foi travado diante da apreensão dos asiáticos.Um bom relacionamento com Pequim é considerado fundamental para o Brasil. Em 2018, o país exportou US$ 64,2 bilhões para a China e teve um superávit na balança bilateral de US$ 29,4 bilhões, resultados frutos de décadas de dedicação por parte do empresariado e do governo brasileiros.”A ditadura militar reconheceu a China em 1974 e, desde a redemocratização, todos presidentes foram responsáveis por um incremento na relação bilateral”, afirma Evandro Menezes de Carvalho, coordenador do Núcleo de Estudos Brasil-China da FGV Direito Rio.A intensa relação com a China, afirma Carvalho, foi significativa para amenizar a crise brasileira. “Se não fosse o superávit comercial com a China, a crise econômica na qual nós nos metemos teria sido ainda pior”, diz.O professor da FGV destaca que a passagem de Bolsonaro por Washington emitiu sinais confusos. O ministro da Economia, Paulo Guedes, por exemplo, afirmou que o Brasil não vai reduzir as exportações para a China, mas ao mesmo tempo disse que Pequim causa “um mal-estar na civilização ocidental”.”Essa deveria ter sido uma imagem na qual o Brasil deixasse claro que a guerra comercial entre EUA e China não pode nos afetar”, diz. “A relação Brasil-China deveria ficar num contexto à parte, até porque os próprios EUA não vão abrir mão de ter uma relação privilegiada com a China”, diz.Um setor para o qual este tema é delicado é o agronegócio. Apenas a soja respondeu por 43% dos US$ 64,2 bilhões exportados do Brasil para a China em 2018. O setor, que apoiou Bolsonaro, evita fazer críticas diretas ao governo, mas não esconde sua preocupação. “Estão ocorrendo algumas distorções, como dizer que o Brasil vê mais importância nos EUA do que na China. Não. A produção brasileira não vê assim”, afirma Gustavo Chavaglia, vice-presidente da Aprosoja Brasil, que congrega os produtores de soja no país.O produtor rural destaca que o agronegócio encara a China como “excelente parceiro” e atribui as declarações bolsonaristas ao que chama de “excesso de expectativa na busca por novos mercados”. Chavaglia salienta, no entanto, que a aproximação com os EUA não deve machucar a relação bilateral com a China. Ele também rejeita a ideia de que o comércio entre brasileiros e chineses tenha viés ideológico. “Nós temos o que eles precisam e eles precisam do que nós temos”, afirma. “Não compactuo com extremistas. Precisamos ter cuidado com os exageros”, diz.Como ocorreu na crise venezuelana, quem tomou as rédeas da relação entre Brasil e China foi o vice-presidente, Hamilton Mourão. O general vai coordenar o mecanismo de diálogo político regular entre os dois países e deve visitar Pequim em maio. Carvalho, da FGV, lembra que Mourão enfatizou a necessidade da boa relação com a China, articulando ideias como o interesse nacional e a soberania.”Essa atitude de relativa hostilidade [de Bolsonaro] é completamente descabida. Vem na hora errada em todos os sentidos”, diz. “Mas esse tipo de abordagem [de Mourão] é algo que a China entende bem, porque eles agem assim”, afirma.