Inglaterra e Irã: quem tira o camelo da sala?
DOHA – Já não há dúvida, e a Copa do Mundo no Catar será palco de uma constatação tornada célebre a partir do título de um livro do americano Franklin Foer: o futebol explica o mundo. E se é assim, deve-se ligar a televisão às 10h00, horário de Brasília, para o jogo inaugural do grupo B, entre Inglaterra e Irã. A partida está longe de ser um clássico, embora os ingleses vivam excelente fase e os iranianos tenham chegado ao Catar com força. Mas o que chama a atenção no duelo começa no vestiário e termina logo depois dos hinos.
Do lado inglês, há receio de que antes de sair do vestiário para o gramado, o atacante inglês Harry Kane seja obrigado a tirar a braçadeira com as cores LGBTQIA+ do movimento One Love. Em setembro, a federação inglesa pediu permissão para a Fifa, de modo que o capitão da Inglaterra pudesse exibir a peça com as cores do arco-íris. Kane, de 29 anos, é um dos sete capitães de seleções europeias – inclusive o País de Gales, que está na Copa– decidido a usar os palcos do torneio para denunciar a discriminação contra os homossexuais no Catar. A Fifa, na véspera da primeira partida, contra-atacou de modo risível ao anunciar que ela mesmo distribuiria braçadeiras com mensagens genéricas como “o futebol une o mundo”, “salve o planeta” etc. É uma mal dissimulada tentativa de abafar o grito de quem realmente se incomoda com a postura oficial – homofóbica e misógina – do país-sede do Mundial de 2022.
Liderados por Kane, os leões ingleses prometem ainda se ajoelhar no gramado do Khalifa International Stadium, ao modo do gesto inaugurado pelo quarterback da NFL, Colin Kaepernick, em protesto ao hino americano na antessala do tempo de Trump e que depois viralizaria mundialmente. Na Inglaterra de Kane a postura tem sido utilizada para condenar o racismo. Os cartolas de sua Majestade, o Rei Charles, consideram o risco de multa, mas dão de ombros. “Existe essa possibilidade, e se realmente acontecer, pagamos”, diz Mark Bullingham, delegado da federação inglesa.
Do lado iraniano, por não haver apoio internacional à causa de alguns dos jogadores, a tensão é maior. A ideia, liderada pelo ótimo atacante Sardar Azmoun, do Bayern Leverkusen, e pelo zagueiro capitão Alireza Jahanbakhsh, do Feyenoord da Holanda: não cantar o hino nacional, em protesto contra a morte de Mahsa Amnini, de 22 anos, que havia sido detida por não usar o véu islâmico de forma adequada. As autoridades de Teerã afirmam que a jovem morreu em razão de uma doença e não por ter sido espancada, informação que incendiou ainda mais os protestos de rua. Saman Ghoddos, nascido na Suécia de pais iranianos, chegou a elogiar os “valentes homens e mulheres” que foram às ruas e disse: “Não quero mesclar política e futebol, mas tocou no futebol, porque as pessoas estão perdendo a vida lutando pela liberdade”. Há possibilidade de eventuais gols não serem comemorados.
É tudo o que a Fifa menos quer, sobretudo na primeira Copa do Mundo do Oriente Médio, realizado em uma nação cuja monarquia absolutista barra as pessoas que se interessam por outras do mesmo gênero e mantém as mulheres à sombra, impondo submissão inaceitável. Pegou mão, na cerimônia de abertura e nas arquibancadas da derrota de 2 x 0 do Catar para o Equador a ausência de mulheres. Não cabe mais, como nunca deveria ter cabido. Inglaterra e Irã prometem subir a escada da dignidade no Khalifa International. Se fizerem o que prometem, terão dado um passo histórico. Se houver recuo, por pressão, ainda assim o camelo estará na sala.